Da reorientação funcional de objetos à construção
optical
Texto: Prof. Dr. João Wesley de Souza
Professor adjunto no Departamento
de Artes Visuais, DAV
Centro de Artes, CAR, Universidade Federal
do Espirito Santo. UFES
2023

Quando nos detemos sobre o processo de criação de Sheila Mancebo ao longo do tempo, percebemos um movimento oscilatório entre o ato de desfuncionalização de objetos deslocados da vida cotidiana e a construção de sistemas visuais padronizados com materiais da indústria recente, que terminam por trazer os parâmetros conceituais do Construtivismo e da Optical Art.
Seu percurso criativo aponta para um caminho no tempo semelhante a estrutura das parábolas. Após percorrer uma longa trajetória temporal, Sheila acaba retornando ao ponto de partida, lugar onde tudo havia começado.
Se buscarmos uma analogia com o Eterno Retorno de Nietzsche, poderíamos dizer que ao retornar ao ponto de partida, onde teve origem seu caminhar processual, Sheila Mancebo reinicia um novo ciclo, porém a cada Retorno, ela parte novamente com uma diferença acrescentada pela experiência que acumulou no seu percurso experimental; a cada ciclo novos conhecimentos técnicos e conceituais vão sendo fixados e arrastados para seu novo deambular parabólico.
Vamos então percorrer juntamente com ela, na ordem cronológica do seu processo de criação, esta citada forma de avançar no tempo e na experiência artística.
Inicialmente em 2002, quando se tem notícias dos seus primeiros trabalhos artísticos, Sheila se apropria de objetos produzidos pela indústria do seu tempo, destituindo-os dos seus aspectos funcionais quando perfura, com buracos circulares, todo o tecido de uma sombrinha, por exemplo. Deste modo poderíamos, por correspondência, dizer que: ao deslocar objetos da banalidade do cotidiano para um ambiente de apreciação estética, como podemos perceber em suas instalações, Sheila replica o já conhecido arcabouço conceitual do Ready-made, que além de reorientar a funcionalidade dos objetos elegidos, também explora a eficiência desta estrutura conceitual, ainda na atualidade onde atua o sujeito-autor.
Ultrapassando agora a esta primeira referência que suas obras iniciais nos remetem, nas obras seguintes, feitas com filme de poliéster, onde interfere recortando e dobrando pequenos círculos, ou aplicando pequenos elementos colados, Sheila a um primeiro olhar, nos parece que explora uma modulação e serialização gestual que termina nos lembrando dos procedimentos construtivos.
Ao afastar-se um pouco mais destas superfícies ativadas por cortes, dobras e colagens, com a variação do movimento corporal do observador, ele percebe por efeito ótico, uma energia, uma movimentação que não existe na realidade física da obra, posto que, não há nenhum motor ou instrumento produzindo este movimento percebido. Sendo assim, então poderíamos concluir que: pela ausência de um motor que pudesse produzir movimentos reais na obra, e se admitindo que esta sensação de movimento, acontece como consequência da percepção do fruidor que se move diante da imagem, teremos aí, a presença de um outro conceito já conhecido, a Optical Art.
Admitindo e reconhecendo o uso deste campo de entendimento estético, não nos é permitido escapar na natureza Fenomenológica que Sheila explora. Uma vez que a interação entre obra e observador, seria a responsável pela sensação de movimento percebido pelo observador, como um fenômeno que emerge da própria experiência visual.

Esqueleto: algo de concreto
Instituto Politécnico – UERJ
2024

Nesta ocupação, Sheila Mancebo se apropria de materiais usados na produção de vestuário pela indústria têxtil e que fazem parte da história do prédio onde hoje se situa o IPRJ. Ao explorar suas características através de tensionamentos e deslocamentos, a artista dá um sentido poético a materiais ordinários, estabelecendo novas relações no espaço onde a vida acontece com a arte.

A exposição faz parte de um projeto com curadoria de Alexandre Sá, Analu Cunha, Ana Tereza Prado Lopes, André Carvalho, Marisa Flórido e Maurício Barros de Castro e ocupará as Galerias Candido Portinari e Gustavo Schnoor com obras de 43 artistas de diferentes gerações e trajetórias. O núcleo da exposição é a devastação e os apagamentos simbólicos, conceituais, discursivos e físicos da história dos nossos corpos, bem como a obsolescência programada da memória, a partir de uma questão específica: a desapropriação da Favela do Esqueleto e a inauguração da UERJ – Campus Maracanã, no mesmo terreno, durante a ditadura civil-militar que, em 2024, completa 60 anos. Além desta Ocupação no Instituto Politécnico em Nova Friburgo, a exposição conta com uma outra na Faculdade de Formação de Professores em São Gonçalo, evidenciando o interesse na expansão e descentralização da produção e pensamentos artísticos. Marca também uma nova gestão preocupada em discutir e reconstruir coletivamente uma política cultural para esta universidade que seja de fato capaz de contribuir para outras produções do Estado do Rio de Janeiro.

SOB MEDIDA
Para o que mora entre o ver e o ser
SESC Nova Friburgo
2009

Nesta exposição, utilizo material elástico na tentativa de problematizar sistemas de regras e medidas que relacionam a visualidade e sua conhecida vizinhança com a inexatidão, como já suspeitava o pensamento clássico.
Elementos flexíveis se transfiguram mostrando que as coisas podem se enriquecer de sentido e ter outras aparências que escapam daquelas, já fixadas pelas convenções. Por outro lado, o tensionamento do objeto e da imagem modifica sua aplicabilidade dentro da realidade e, no caso das fitas métricas elásticas, o próprio material as desfuncionaliza.
Os elementos numéricos e geométricos, ao serem deformados, evidenciam acontecimentos e deslocamentos num jogo de ser e parecer, igualdade e diferença, certeza e dúvida, revelando novas possibilidades. E, neste caso, as indefinições constituem situações fundamentais deste jogo, já que a medida de cada coisa, por algumas ocasiões, encontra-se no âmbito do imensurável.
Talvez estejam aí as principais questões que procuro enfatizar nestes trabalhos, ou seja, nas dúvidas que emergem diretamente do trânsito entre aquilo que pertence ao campo da lógica e tudo que escapa de seus limites, ultrapassando a realidade física do que podemos tocar ou medir.

Clube Naval: Ocupação em lugar de Estar
Texto: Leandro Furtado
2009

… Arquitetura hoje, para muitos, ainda é espaço-tempo de um bem-estar. Porém daqui, já de início, mais do que um compor conceitualmente as iniciativas do grupo “até…(arquitetura, tempo e espaço)”, pretendemos um problematizar das possibilidades poéticas de dentro do mesmo. É também um fazer refletir através da arte e seus significantes. O artífice, o artista e/ou o artesão são, por excelência, construtores do, e no lugar. Pensemos então, assim como nos tornamos, poetas do lugar…
Dadas estas condições, o que por muitos acordariam naquele inicial conceito de bem-estar, aqui este se torna obsoleto. O que se pretende aqui em princípio-último é uma troca. E como para que tornar válida esta, que problematizamos e pensamos refletir cada um dos termos objetivamente.
Podemos observar que quase toda a nossa história tenha sido composta num embate entre o movimento e a inércia. E por que não dizer, da dialética entre o Ser e o Estar?
O poeta é aquele que, quando pressente lá do longe um marasmo, é o primeiro a acordar o povo da ilusão daquilo que virá, fazendo música com os sinos da sinagoga. É este mesmo ser-farol, movido muitas vezes pela ânsia/angústia qual percebemos em nós, que trata de um cuidar autêntico do mundo. Nunca dados por satisfeitos, estamos sempre abertos para o Ser, …porque para verdadeiramente bem-se-Estar, colocamos sempre o abismo – falo deste algo quase invisível aos olhos e imperceptível aos outros sentidos, porém muito mais concreto ao nosso Sentido – da grande diferença entre ethos e morus em questão (onde o primeiro poderia representar uma “verdade constantemente móvel” e, o segundo, a própria inércia).
É talvez mesmo nesta urgência daquela troca ética – do simplesmente Estar pelo cuidado autêntico de uma Ocupação – que possamos nos aproximar verdadeiramente de um ser-no mundo, conceito este que nos indica e nos faz apontar as possibilidades dentro das aberturas de um espaço-tempo, o “onde/quando” podermos nos realizar na Busca em imanência.
Ocupamos, por-tão, um lugar, um espaço no tempo, não para simplesmente estar, mas para traduzir um cuidar, um fazer perceber de um mundo e um gerar poético do mesmo mundo sobre a terra, ou seja, um revisitamento do trazer-relacionar… arte e vida. vida.

…Às vezes as coisas mais belas são também as mais perigosas
Texto: Célia Barros
2023

…Ás vezes as coisas mais belas são também as mais perigosas
Quando esta frase é proferida por um biólogo é fácil sermos sugestionados pela imagem de serpentes, cogumelos ou outros seres na natureza, que em contato com os seres humanos, podem ser mortíferos. Kant e Hegel se debruçaram largamente sobre a ideia de belo, lançando alguns paradigmas sobre as questões de gosto e de belo na arte.
No entanto, como definir o que é belo, se considerarmos que beleza não é exatamente um atributo das coisas ou dos seres, mas um sentimento que surge a partir da relação que estabelecemos com eles e entre eles? Podemos considerar então, que beleza é um dos muitos sentimentos passiveis de serem percebidos pelas relações, como êxtase, horror, tristeza, euforia, apatia, etc
A partir dessa premissa, a arte não precisa ser bela mas atrair para a relação, e a pessoa que observa, alguém que se disponibiliza a entrar no jogo das sensações e arriscar-se não só a vivenciar a tranquilizadora sensação de harmonia, como também experienciar a aversão ou o horror.
Apesar de muito diferentes entre si, cada obra desta exposição parece carregar diferentes dimensões daquilo que nos é mais íntimo sendo colocado do avesso. Chega a parecer que de alguma forma todas provocam um gesto de extração – arrancar do seio, extirpar o âmago.
No entanto, há algo de frieza calculada em cada gesto. Os panos sujos cansados de esfregar ainda remetem irremediavelmente aos fazeres femininos. Encardidos, escancaram a sina de um corpo que oculta suas nódoas para exaltar uma pureza que jamais se sustentará. Numa estranha relação de intimidade, fios de cabelo exaltam a fragilidade do corpo e carregam o seu ADN.
Roupas revestidas por folhas e cascas de árvores nos remetem para a sustentabilidade da moda e a proteção que um corpo frágil necessita para habitar o mundo e com isso, fere-o. Já a relação simbiótica entre dois seres ou dois materiais, apresenta-se estável e em sintonia, como um desejo de utopia. Num caminho oposto, aquele das discrepâncias e incongruências, está um desnecessário tão vital quanto a bolsa multiusos de qualquer mulher.
Asas costuradas, bordadas, repletas de detalhes que ora tendem para o adocicado ora amargam nas memórias. Bonecas e pelúcias se recusam a ser belas, apresentando-nos sua carranca anti social.
O bambu dobrado e costurado forma pipas que não voam, mas deixam escapar suas sombras como um perpétuo jogo de crianças. Restos de construção, material de descarte se reinventam num passatempo em que o corpo ausente se faz presente pelos gestos inacabados. Pseudonarrativas que a partir de outras histórias, se constituem como uma nova forma em pequenos ciclos que se repetem e pequenos monstros nos permitem acesso ao grotesco das sombras. A finitude é infinita e incessante.

RESET 21
Texto: Osvaldo Carvalho
Centro Cultural Correios Niterói
2021

“Pior que esquecer a história, é distorcê-la para avivar o ressentimento.”
Peter Brown

Uma exibição coletiva com vários artistas, que envolve múltiplas abordagens de técnicas e de processos, enseja leituras não lineares entre os trabalhos em si. Na prática, há diversos agentes que implicam uma produção artística, e que parecem atuar de maneira aleatória. Porém, quando essa produção tem como leitmotiv reflexões reunidas ao longo de um período pandêmico, sob a égide da insegurança e do medo, da desinformação e do despreparo, de ações negacionistas e de descrédito à ciência, ao que se juntam ações de grave impacto sobre o meio ambiente, aumento do desemprego, pobreza crescente, isolamento social, entre inúmeras outras mazelas de repercussão global, invariavelmente ela recairá no âmbito dessas vivências, pois são respostas mais prementes, exigidas pela situação.
A proposta foi conceber uma exposição em que esses artistas apontassem, em suas faturas desenvolvidas durante a pandemia, de que maneira esse evento adverso sensibilizou seus processos criativos. É um período que requer ainda cuidados, que provoca ansiedade e incerteza, mas também um tempo de estudo e imersão, no qual esses artistas elaboraram e guardaram suas realizações. A finalidade é justamente trazer à tona aquela produção represada e dar um reset em suas atividades. Resetar, um anglicismo absorvido pela língua portuguesa, é desligar e ligar o computador porque “deu tilt”, computador que se tornou o novo meio de vida que muitos encontraram para trabalhar, tanto quanto se distrair.
Por meio virtual foram refeitas as conexões e as relações, o mundo digital ganhou dimensões inimagináveis, para o bem e para o mal. A sensação desconfortável de ter falsas informações corroendo nossa lucidez, distorcendo fatos, é um desses exemplos malignos. Peter Brown, em recente entrevista para o jornal El País, nos diz que “não há nada mais trágico que um homem que perdeu a memória”, e que, “distorcer a história é ainda pior do que esquecê-la”. Os artistas presentes em RESET 21 lidam com essa tênue linha, a cada dia mais difusa, de modo a não deixar que se perca a essência de nossa humanidade, para que não haja “lembranças pela metade”, conforme apregoa o historiador irlandês, e que diminui “nossa capacidade de nos interpor e criticar as falsas memórias históricas”. Resistir às intempéries causadas por aqueles que lidam com a vida com antolhos ideológicos, é tarefa para os que caminham de mãos dadas com narrativas sólidas, tijolo após tijolo, na construção de uma sociedade que se reconheça em todos os seus, sem exceção, esse é o pressuposto que caracteriza o artista neste início do século 21.
Assim é que restaurar a confiança nos haveres e deveres de nossos antepassados, não pelos erros, não pelos acertos, mas pelo aprendizado que nos legaram, faz dessa mostra um pequeno símbolo de esforço para destravar o HD de nossas almas entorpecidas, para que nosso sistema operacional se restabeleça, estejamos novamente acessíveis, sem nenhum vírus detectado.